Por Maria Gabriela Merayo Irrazábal
Que se pode dizer do texto de Marta e Maria que já não
esteja dito? Sobra alguma coisa? Quantas vezes as mulheres trabalhadoras
escutaram a frase: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas...”?
E quantas outras, as mais tranquilas se confortaram por haver “escolhido a
melhor parte” sem esforçar-se demais? Que podemos dizer de Lucas, o evangelista
das mulheres, como muitos o chamam, distinto ao que escutamos? Ainda há algo
por escutar, que embora tenha sido dito, mesmo assim, é muito pouco conhecido.
O contexto
O texto está incluído em um capítulo
evangelizador, são discípulos e apóstolos (todos varões) anunciando a Boa Nova
em distintas cidades, enquanto sobem a Jerusalém junto a Jesus. Estas perícopes
estão coroadas com o mandamento do amor ao próximo na parábola do Bom
samaritano e conclui com o texto das irmãs Marta e Maria. Que tem a ver este
texto com os anteriores e por que o autor o encaixa aqui?
O texto
Pois bem, tem a ver sim! O evangelista utiliza uma
palavra que logo aparecerá em Atos para designar aos que faziam o trabalho que
os apóstolos não queriam, ou não tinham tempo a fazer: diaconia. Usulmente na
tradução do grego para o português a palavra diaconia se traduz por ‘serviço’,
então como Marta e Maria recebem a Jesus na sua casa só pensamos em Marta como
uma mulher mui preocupada pelos fazeres da casa, mas não é assim. A palavra
diaconia não deixa dúvidas do que Marta era: uma mulher ao serviço dos outros,
forte, inteligente, ativa e questionadora. Por que então Lucas calaria a boca
de alguém assim? Pior ainda, por que as palavras de silenciamento para esta
mulher saem da boca do próprio Jesus?
Não todo tempo
passado foi pior
A resposta a encontrarmos se olharmos para o texto
como certa suspeita. Corria o ano 95 d.C. quando o evangelho de Lucas e Atos
dos Apóstolos, do mesmo autor, foi escrito. É este o retrato das primeiras
comunidades cristãs? Pois não, não é. Para entender como viviam e se
relacionavam entre si os primeiros cristãos temos que ir aos primeiros escritos
do NT: as epístolas paulinas e até o evangelho de Marcos. Nas cartas autênticas
de Paulo escritas desde o ano 50 d.C. ao 55 d.C. as mulheres tinham quase as
mesmas funções na comunidade que os varões, e utilizo a palavra ‘quase’ por não
dizer que tinham maiores funções que estes. Eram as que ajudavam com a economia
das viagens, as que evangelizavam, as que levavam de uma cidade a outra as
cartas escritas pelo apóstolo, as que tomavam conta da comunidade enquanto
Paulo empreendia às viagens.
Se nos adiantamos dez anos no tempo, nos encontramos
com o evangelho de Marcos escrito por volta do ano 65 d.C. Que se diz sobre as
mulheres nele? Neste simples e belo relato de apenas uns quinze capítulos (o
capitulo dezesseis é um anexo posterior), os apóstolos são apresentados como
pessoas torpes que não entendem a mensagem de Jesus, que procuram os primeiros
postos, que querem desviar o caminho da cruz do Mestre. Enquanto isso, um grupo
de mulheres, lideradas por Maria Madalena são as que levam o título de
verdadeiros discípulos neste evangelho. Elas são as que seguem Jesus, o servem e sobem com ele até Jerusalém para
compartilhar sua morte. Os três verbos usados neste evangelho para o
discipulado ideal são só usados para este grupo de mulheres (Cf. Mc 15,
40-41).
Que mudanças houve desde o ano 65 ao 95 para que a
mulher fosse convidada a se calarem? Temos alguns indícios nas cartas pastorais
(Timóteo e Tito) contemporâneas de Lucas, escritas ao redor do ano 100 d.C.,
elas apresentam comunidades mais numerosas e organizadas com estruturas
verticais e patriarcais onde a mulher já não tem cabida para as tarefas
comunitárias que ficam exclusivamente nas mãos dos varões.
Voltando ao
texto
Então o autor do evangelho de Lucas, está valorizando
o discipulado da mulher ou seu silêncio? Infelizmente o evangelista é varão
vivendo em uma época onde o patriarcalismo e androcentrismo são a moeda
corrente e os gestos e palavras de Jesus já se vão perdendo, vão tomando outra
compreensão. O que faz Lucas é preponderar a submissão da mulher ao varão,
lembremos que Maria está sentada aos pés de Jesus, escutando, é dizer em silêncio,
e é ela a valorizada por haver escolhido a melhor parte. Enquanto Marta que é
diaconisa, que age, fala, questiona é convidada tomar a atitude silenciosa e
quieta de Maria.
Concluindo
Durante muitos anos escutamos pregações
bem diferentes à descrita brevemente aqui. Nossas igrejas, nossos pastores, são
filhos como nós, de uma sociedade machista e ainda estão inseridos em
estruturas eclesiais patriarcalistas e androcentricas, pelo tanto, é muito
saudável que nós mulheres e varões que não concordamos com estes anti-valores e
esperamos a complementariedade das vozes femininas e masculinas em todos os
âmbitos da sociedade fiquemos alertas para não continuar a repetir esquemas
anti evangélicos que enalteçam uns e submetam outros.
Seria muito bom que a hermenêutica da
suspeita esteja mais presente em nossas leituras e interpretações bíblicas,
conscientes que a Bíblia é Palavra de Deus, mas também palavras de varões.
Reverendas Anglicanas durante o XXXI Sínodo Geral da IEAB em São Paulo, 2010 |