6 ago 2013

Com olhos de mulher: Ser Marta ou ser Maria?

Por Maria Gabriela Merayo Irrazábal

Que se pode dizer do texto de Marta e Maria que já não esteja dito? Sobra alguma coisa? Quantas vezes as mulheres trabalhadoras escutaram a frase: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas...”? E quantas outras, as mais tranquilas se confortaram por haver “escolhido a melhor parte” sem esforçar-se demais? Que podemos dizer de Lucas, o evangelista das mulheres, como muitos o chamam, distinto ao que escutamos? Ainda há algo por escutar, que embora tenha sido dito, mesmo assim, é muito pouco conhecido.

O contexto

         O texto está incluído em um capítulo evangelizador, são discípulos e apóstolos (todos varões) anunciando a Boa Nova em distintas cidades, enquanto sobem a Jerusalém junto a Jesus. Estas perícopes estão coroadas com o mandamento do amor ao próximo na parábola do Bom samaritano e conclui com o texto das irmãs Marta e Maria. Que tem a ver este texto com os anteriores e por que o autor o encaixa aqui?

O texto

Pois bem, tem a ver sim! O evangelista utiliza uma palavra que logo aparecerá em Atos para designar aos que faziam o trabalho que os apóstolos não queriam, ou não tinham tempo a fazer: diaconia. Usulmente na tradução do grego para o português a palavra diaconia se traduz por ‘serviço’, então como Marta e Maria recebem a Jesus na sua casa só pensamos em Marta como uma mulher mui preocupada pelos fazeres da casa, mas não é assim. A palavra diaconia não deixa dúvidas do que Marta era: uma mulher ao serviço dos outros, forte, inteligente, ativa e questionadora. Por que então Lucas calaria a boca de alguém assim? Pior ainda, por que as palavras de silenciamento para esta mulher saem da boca do próprio Jesus?

Não todo tempo passado foi pior

A resposta a encontrarmos se olharmos para o texto como certa suspeita. Corria o ano 95 d.C. quando o evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, do mesmo autor, foi escrito. É este o retrato das primeiras comunidades cristãs? Pois não, não é. Para entender como viviam e se relacionavam entre si os primeiros cristãos temos que ir aos primeiros escritos do NT: as epístolas paulinas e até o evangelho de Marcos. Nas cartas autênticas de Paulo escritas desde o ano 50 d.C. ao 55 d.C. as mulheres tinham quase as mesmas funções na comunidade que os varões, e utilizo a palavra ‘quase’ por não dizer que tinham maiores funções que estes. Eram as que ajudavam com a economia das viagens, as que evangelizavam, as que levavam de uma cidade a outra as cartas escritas pelo apóstolo, as que tomavam conta da comunidade enquanto Paulo empreendia às viagens.
Se nos adiantamos dez anos no tempo, nos encontramos com o evangelho de Marcos escrito por volta do ano 65 d.C. Que se diz sobre as mulheres nele? Neste simples e belo relato de apenas uns quinze capítulos (o capitulo dezesseis é um anexo posterior), os apóstolos são apresentados como pessoas torpes que não entendem a mensagem de Jesus, que procuram os primeiros postos, que querem desviar o caminho da cruz do Mestre. Enquanto isso, um grupo de mulheres, lideradas por Maria Madalena são as que levam o título de verdadeiros discípulos neste evangelho. Elas são as que seguem Jesus, o servem e sobem com ele até Jerusalém para compartilhar sua morte. Os três verbos usados neste evangelho para o discipulado ideal são só usados para este grupo de mulheres (Cf. Mc 15, 40-41).
Que mudanças houve desde o ano 65 ao 95 para que a mulher fosse convidada a se calarem? Temos alguns indícios nas cartas pastorais (Timóteo e Tito) contemporâneas de Lucas, escritas ao redor do ano 100 d.C., elas apresentam comunidades mais numerosas e organizadas com estruturas verticais e patriarcais onde a mulher já não tem cabida para as tarefas comunitárias que ficam exclusivamente nas mãos dos varões.

Voltando ao texto

Então o autor do evangelho de Lucas, está valorizando o discipulado da mulher ou seu silêncio? Infelizmente o evangelista é varão vivendo em uma época onde o patriarcalismo e androcentrismo são a moeda corrente e os gestos e palavras de Jesus já se vão perdendo, vão tomando outra compreensão. O que faz Lucas é preponderar a submissão da mulher ao varão, lembremos que Maria está sentada aos pés de Jesus, escutando, é dizer em silêncio, e é ela a valorizada por haver escolhido a melhor parte. Enquanto Marta que é diaconisa, que age, fala, questiona é convidada tomar a atitude silenciosa e quieta de Maria.

Concluindo

         Durante muitos anos escutamos pregações bem diferentes à descrita brevemente aqui. Nossas igrejas, nossos pastores, são filhos como nós, de uma sociedade machista e ainda estão inseridos em estruturas eclesiais patriarcalistas e androcentricas, pelo tanto, é muito saudável que nós mulheres e varões que não concordamos com estes anti-valores e esperamos a complementariedade das vozes femininas e masculinas em todos os âmbitos da sociedade fiquemos alertas para não continuar a repetir esquemas anti evangélicos que enalteçam uns e submetam outros.

         Seria muito bom que a hermenêutica da suspeita esteja mais presente em nossas leituras e interpretações bíblicas, conscientes que a Bíblia é Palavra de Deus, mas também palavras de varões.


Reverendas Anglicanas durante o XXXI Sínodo Geral da IEAB em São Paulo, 2010